Remexendo em meus achados, ou seriam perdidos?
Acabei encontrando um texto lavrado nos idos de 1998, que nunca foi dado a publico, e como acabei a não muito tempo de ter criado a categoria “memórias” e em razão de se tratar de algo que diria, retrato fiel da vida, decidi dá-lo a luz neste blog, como uma imagem da nossa sociedade cristã...
lá vai o dito texto:
Em outubro passado, como eu presumia que um dia iria acontecer, desencadeou-se o problema que persegue minha gente há muito tempo; pressão alta.
Acredito que em outras oportunidades já deva ter tido crises rápidas e passageiras, por obra de stress e ou coisa que o valha, que os médicos de então apenas me despachavam com:
--Corte o sal de suas refeições o mais possível e abstenha-se de álcool.
Até aqui tudo bem, só que desta vez foi para valer, mas não estou aqui para porfiar em lamúrias, já que tenho esse monstro comigo é melhor tratar de não alimentá-lo e ou mimá-lo com chiliques ou que tais.
O que me trás diante deste teclado foi o tempo que passei no consultório médico aguardando que a dita cuja acima mencionada baixasse a níveis ditos normais.
Lá estava eu o paciente (eita nominho mais adequado para um doente em um hospital, principalmente se for do SUS), aguardando o efeito dos remédios, quando me dei conta de um senhor, não sei se avançado em idade ou um ser carcomido pelas agruras da vida, deitado em uma maca a minha frente;
Por suas feições, era um desses homens forjados na lide dura do dia a dia dos dotados de um cabedal nulo, que deve ter tido que conquistar a sobrevivência a cada momento com denodo, e poucos e parcos instrumentos, a não ser sua energia física.
Com toda a certeza, as luzes da escola, lhe fora negada pela vida;
Em suas narinas, dois chumaços de gaze embebidas em sangue que se lhe esvaia aos borbotões. Seu olhar, longe e esgazeados pela fraqueza e cansaço aparentes; mas me pareceram olhos lúcidos, muito provavelmente relembrando, sem muito esforço, alguns dos poucos momentos felizes de sua vida.
Suas roupas, simples e surradas, que nós que ingressamos na terceira infância temos a mania de afirmar que são as mais gostosas.
Estava ali aquietado, com o olhar perdido ao longe. Com sua ingente dor; ainda assim denotava uma altivez que os mártires e os sofredores apresentam; nenhuma revolta, nem um traço de angustia, mas uma face que tresandava humildade evangélica, de quem diz: --"Seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus..."
Não foi tudo de que até aqui falei que me pôs pensativo, pois tudo isso foi apenas obtido de observação; mas os seus pés, descobertos pelo desarranjo da maca.
Pés que traziam esculpidos em suas rugosidades o testemunho dos caminhos percorridos, dos espinhos pisados, das pedras que teve que trilhar, pés que na maior parte de sua vida com certeza o levou nas estradas de trabalhos árduos. Pés de pele curtida, quase couro, ali abandonados no leito, sem forças para lhe levar a canto algum.
Nesse devaneio, a vista daqueles pés anonimo, pude imaginar aqueles poucos momentos que muito provavelmente aquele homem recordava,. No vazio daquela situação...
As poucas alegrias de nossa gente simples, o futebol da várzea, os bailes de final de semana, quando então ele podia caprichar com parcos recurso, no se vestir, no cabelo, nos movimentos rebuscados de seus passos para impressionar as moças de seu tempo,, pés que muito provavelmente o ajudou nas rixas ou nas fugas de brigas inglórias;
Pé fracos e incapazes de lhe servir agora, para buscar outros caminhos... ao seu lado uma filha bem vestida, que muito provavelmente o levara até ali....
Meus devaneios foram abruptamente interrompidos pela voz de uma enfermeira com um tom de sargento fazendo inspeção no quartel:
--Aqui não pode ficar ninguém que não for paciente, faça-me o favor de sair.
- Mas eu estou cuidan.... tentou dizer a filha, interrompida pela enfermeira que arrematou:
- Cuidando dele estamos nós, a senhora queira sair e aguardar lá fora.
A filha resignou-se e retirou-se para fora do local.
Aquele senhor chamou a enfermeira e disse em um fio de voz como quem do fundo de um poço brada por socorro:
--Olha moça, essa minha filha me bateu, é por isso que eu estou assim...
Barão de Bitarú, em uma triste tarde de devaneio.
Esse era todo os texto, até hoje quanto acrescento:
Cerca de vinte e poucos minutos depois, aquela moça que não queria sair pois estava cuidando do indigitado senhor, saiu dali, devidamente algemada, e quero crer, provocando mais dores no coração daquele pai.
Deus possa ter misericórdia de nós, apesar de nós mesmos.
Saibam todos que:
V.D.M.I.Ae